terça-feira, 23 de março de 2010

Um divisor de águas

Houve um tempo que me interessava apenas pelo útil, algo que tivesse um propósito. O que julgava inútil era excluído sem a menor dor.

Durante uns 7 anos de minha vida tentei a música, não encontrei sentido, não pude senti-la.

Tentei a dança, não era aquilo que pensei, não me motivava, era vazio.

Tentei a pintura mas logo o tédio chegou.

Foi a vez da psicologia. Era falha demais. O que modelos comportamentais diziam de alguém? De onde eram estas teorias estranhas, sem correspondência com o real? Peugeot? Skinner? Freud? que história bizarra aquela de Anna Ó! Nada fazia sentido.

Precisava de algo útil, algo que me provasse o real a todo instante. Nestes tempos eu não lia poesia, nem poemas, nem contos...

Fui à exatidão, aos cálculos, vasculhei... Procurava ler o que era real. Histórias reais, almanaques de astronomia, métodos númericos, a evolução do ENIAC, as Redes Neurais artificias....Oh! Quanta realidade! Quantos deslumbrados...

E o tédio persistia....o vazio ainda estava lá.

Hoje sei que deveria ser uma forte depressão. Era falta de cor na vida. Ninguém me ensinou a buscar só utilidades, na minha vã filosofia do útil. Cresci assim, no meio de gregos e troianos, seguia lutando sozinha.

Apesar dos esforços, o vazio ainda existia e as provas já não eram provas, pois eu não sabia o que provar, nem me lembro mais quais eram as dúvidas, angústias...Mas me lembro do vazio.

Até que um dia, um divisor de águas se fez em minha frente. Não segui rio abaixo, desviei. Eu já não queria provas de nada, mesmo porque temos uma tendência de arrumar desculpas para refutar o que está às nossas vistas, então...

Com o tempo, voltei a rever aquelas coisas que desprezei e que hoje me alimentam.

Hoje sinto falta do meu velho violino 3/4 e me arrependo de tê-lo vendido, e daquele maestro que me colocou, de improviso, como spalla naquele dia, na apresentação da orquestra. Sinto falta do sapateado, como era lindo aquele ritmo, era a mais pura sensação de liberdade, como se o corpo ganhasse volume e estivessemos espalhados...

Saudades do pessoal da psicologia, aquele povo tinha olhos de ver almas. Quantas vezes me ouviram dizer que éramos um ábaco? Totalmente previsíveis? Para que modelos comportamentais? E quanta paciência tiveram comigo! Fui um material e tanto hein?
É no silêncio de cada um deles, naquela época, que hoje ainda aprendo.

Não me lembro como, nem do porquê, mas de uns anos para cá a música aperta meu peito e tira de mim as lembranças que talvez nem sejam dessa vida. Acredito que carregamos feridas passadas.

A arte da dança é o mais lindo reconhecimento deste nobre invólucro carnal emprestado pela natureza.

O ser humano é uma biblioteca, independente de modelos "behaviouristas", histórias de infância, ou da paixão doentia entre Freud e Anna Ó. Tudo é rico e repleto de amor, somos cada um, um universo.

Constatei isso quando aprendi a ouvir o que me contam. Como é bom vislumbrar da janela, o mundo do outro. Quanta generosidade!

Os extremos do antes, o incerto e o exato, já não estão separados, tudo está no mesmo lugar e não me preocupo em "etiquetá-los" mais.

Eu quero beber a vida até o último gole e que ninguém me avise sobre a chegada dele. Quero continuar o meu namoro com a filosofia, com o ser humano, com a poesia...esbarrei, no meio do caminho, com um incentivador, daqueles que falam com os olhos...tamanho é o brilho que têm.

Minha vida tem cor. Não tenho mais dúvidas, muito menos certezas. Apenas vivo como se acreditasse que essa fosse a última viagem. Estou feliz...bons ventos sopram.

Contrariando Drummond
Não Carlos, não vá ser gauche na vida!
Levanta a cabeça Carlos!

c. q. d.

5 comentários:

  1. Val,

    Esse é o encontro com o profundo: não há certo nem errado; somente uma luz que chega em intensidades diferentes para cada ser, cada coisa.
    Que bom ler esse texto! Libertação plena...

    Beijos!

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  2. Oi Roque, era isso mesmo que eu queria passar, liberdade plena. o livro que me emprestou foi uma ponte. Obrigada.

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  3. Olá, Val!

    E eu, aqui do meu recanto, só curtindo o belo texto. Olha, a vida é mesmo bela. Já dizia o querido Mário Quintana, falando sobre o sentimento de renovação e da beleza do mundo e da vida:

    "Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto é como se abrisse o mesmo livro numa página nova..."

    Abraço!

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  4. Jajáaaaa, que bom você por aqui caraaaa! Eu adoro seus comentários! Caminhemos...beijo enorme!

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  5. Val,
    Palavras de Nietzsche: "Torna-te que tu és".
    Que privilégio ter as águas divididas em plena juventude! É desse balanço que se nutre a vida!
    Um grande beijo,
    Mari

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